Vol 21 (2022) Antropoficciones

A civilização do plástico / o plástico da civilização: maleabilidades

Evando Nascimento

 

Todas as cores plásticas do ARCO-ÍRIS: o Homo plasticus. Bandeira desfraldada…

Somos aquilo que fazemos, Homo poeticus. Há mais ou menos dois anos comecei a guardar e colecionar essas garrafinhas de plástico, que têm originalmente como conteúdo água-de-coco & suco de laranja, vendidos num quiosque da Cobal (Centro de Abastecimento) de Botafogo. Me encantou desde o início a variedade de cores das tampinhas.

Tenho ao mesmo tempo fascínio e horror ao PLÁSTICO, essa invenção do século XX, tão útil quanto nociva. Sabe-se que sua decomposição completa na natureza pode levar milênios, pois a matéria original dos objetos sobrevive em estruturas microscópicas. Lançadas no oceano, essas partículas são engolidas por peixes, de que nos alimentamos, ingerindo simultaneamente o pl& aacute;stico que fabricamos. Isso é o que chamo de cadeia desnutritiva, pois nos leva a comer os detritos plásticos que produzimos –

O lado fascinante dos plásticos vem de serem moldáveis e reutilizáveis ao infinito. Com o tempo, vi que as tais garrafinhas poderiam ter nova utilidade: arranjadas ao modo de uma pequena instalação, constituem verdadeiros ready-mades. Não é preciso outra intervenção senão alinhá-las como PINOS DE BOLICHE para que adquiram um aspecto lúdico-visual.

Claro está que os ready-mades de Duchamp tinham outros propósitos, muito distantes da estetização que se fez deles ou de obras neles inspiradas. No caso dessas garrafinhas, o conceito de ready-made, do artefato já-pronto ou pré-fabricado, é somente um dado de partida para obter outros efeitos não duchampianos. (Deixo claro que tenho fervorosa admiração por MD, apenas não sou seu discípulo ou seguidor.)

Associar essas pequenas estruturas plásticas à bandeira do arco-íris LGBTQIAP+ foi um modo de dar uma conotação política a algo tão niilista quanto o plástico. Nunca fui um militante gay ou algo similar, mas apoio incondicionalmente toda LUTA ANTIFASCISTA que visa a proteger minorias precarizadas, as quais muitas vezes nem tão minoritárias (quantitativamente) são. Esse é também um modo de afirmar O PODER DAS CORES, muito além de qualquer preconceito sexual, étnico, de classe ou de gênero.

Como os humanos e os outros viventes, os plásticos são orgânicos (a maior parte deles deriva do petróleo, matéria orgânica fossilizada) & moldáveis – portanto, se bem utilizados, podem ser aliados e não apenas inimigos.

A INSTALAÇÃO, pequena ou grande, é para mim um evento de INSTAURAÇÃO – não basta juntar objetos ao acaso, é preciso selecioná-los, reuni-los & amá-los, tal como procedem os amantes de COLEÇÕES. Só depois de muito tempo, por vezes anos, tais artefatos estão prontos para serem reinstalados noutra ordem & lugar, diferente do lugar e da ordem onde surgiram pela primeira vez. A verdadeira instalação acontece como se fosse uma nova primeira vez do objeto assim reinstaurado.

(Quando criança, fui um colecionador de tampinhas de refrigerantes, entre outros objetos que me constituíam como sujeito primitivo. Retomar essa atividade é de algum modo tornar-me novamente infante – mas não desejo virar um acumulador obsessivo, apenas um ANARTISTA COLETOR.)

Eis toda diferença entre restaurar & instaurar: a primeira quer reconstituir o objeto tal e qual foi concebido originalmente – a segunda quer inaugurar um novo tempo e lugar para o objeto, que assim se converte em objeto-sujeito. Alinhadas ou tombadas, essas garrafinhas me lembram verdadeiras pessoas, com suas cores & posições idiossincráticas. PERSONAS PLÁSTICAS, tal como nós Homo plasticus. O abjeto objeto vira gente como a gente…

A existência é feita de PLASTICIDADES que se renovam a cada dia: engendramentos, amputações & próteses. A palavra grega poiésisindicava a criação, a fabricação, o fazer – daí veio a POESIA. Já o plastikós sinalizava o que serve para modelar, relativo à arte de modelar. Juntando plastikós & poiésis: o que serve para modelar é o que nos faz também humanos. Daí jamais haver o sujeito ou o objeto puro, mas sempre o sujeito-objeto e o objeto-sujeito. O que fazemos é o que somos. Homo poeticus, Homo plasticus.

(Porém alguns de nós são o que negam ser: denegacionistas…)